O “pânico satânico” foi uma fase de histeria moral que atravessou os EUA durante os anos 80 e se estendeu até os anos 90, alguns casos famosos (como o dos três de West Memphis, abordado na trilogia de documentários Paradise Lost, ou o caso Evandro, abordado em podcast e documentário) são dependentes do pânico moral que se estabeleceu durante essa fase, mas existem outros casos, eu falo sobre eles aqui (mas antes é importante entender a linha do tempo completa)
Em 1980, um livro de memórias então desacreditado, chamado “Michelle Remembers”, tornou-se um best-seller escandaloso, com base no suposto detalhamento de uma infância sofrendo abusos sexuais provocados por organizações ocultas, todos relatados com uma riqueza de detalhes chocante. Seus co-autores foram o controverso psicólogo Lawrence Pazder e sua esposa Michelle Smith, ex-paciente que Pazder alegou ter regredido para a infância através da hipnose. Pazder supostamente ajudou Smith a descobrir memórias de abuso nas mãos de membros da Igreja de Satanás, que Pazder insistiu que era mais antigo do que o grupo de LaVey (uma organização satanista dos EUA) e já existia por vários séculos.
Quase desde o momento da publicação de Michelle Remembers, suas alegações foram repetidas e completamente desmascaradas. No entanto, graças a elogios generalizados e crédulos da mídia, Pazder e Smith foram capazes de estabelecer sua história, e Pazder tornou-se visto como um especialista na área do que viria depois a ser chamado de “abuso ritual satânico”.
Apesar da implausibilidade e da base não verificável de suas histórias de abusos terríveis e orgias sexuais, Michelle Remembers foi apresentada durante os anos 80 e início dos anos 90 como um livro didático para profissionais do direito e outras autoridades. Ele também gerou inúmeras memórias similares como “Satan’s Underground” de 1988, todas igualmente falsas, que embelezaram e incorporaram a idéia de um culto maciço, intergeracional e clandestino, de rituais demoníacos e abuso sexual - que poderia estar ocorrendo na vizinhança de qualquer um.
“Os adoradores do diabo podem estar em qualquer lugar”, disse Peter Berbergal, resumindo o zeitgeist. “Eles podem ser seu vizinho. Eles podem ser os cuidadores do seu filho"
.
A falsa narrativa de Michelle Remembers impactaria diretamente o país por mais de uma década. Suas fantasias ocultas sombrias ajudaram a desencadear a erupção de acusações extremamente violentas e altamente infundadas de abuso ritual satânico que foram anexadas a uma série de creches ao longo dos anos 80. A crença de que os donos de creches em todo o país estavam visitando lugares ocultos obscuros de abuso infantil contra crianças era a parte mais proeminente de um pânico em massa de abuso sexual em creches, que fazia parte da onda de medo mais ampla da década de 1980.
Esse medo devastaria comunidades e arruinaria várias vidas antes que finalmente diminuísse - e levaria a dois dos julgamentos criminais mais notórios da história dos EUA.
Em seu livro sobre a histeria de abuso ritual, Satan’s Silence, a jornalista Debbie Nathan elucida esse projeto básico do Satanic Panic: “Para os fundamentalistas cristãos de direita mergulhados no conhecimento sobre demônios e fervilhando hostilidade em relação à assistência pública à criança, era difícil não abraçar a noção do demônio se infiltrando em creches.” E no início da década, foi exatamente o que aconteceu.
Em 1980, em Bakersfield, Califórnia, assistentes sociais estavam lendo a recém-publicada Michelle Remembers como parte de seu treinamento, quando várias crianças se apresentaram para declarar que haviam sido molestadas como parte de uma rede sexual oculta local clandestina. Duas das meninas haviam sido treinadas por um avô que se acreditava ter histórico de doença mental. Nos próximos meses, sua história de estranhos atos sexuais ocultos se tornaria cada vez mais bizarra, pois alegavam terem sido pendurados em ganchos na sala de estar de sua família, forçados a beber sangue e assistir a sacrifícios rituais de bebês e muito mais.
Entre 1984 e 1986, a investigação dessas alegações de abuso ritual satânico enviaria pelo menos 26 pessoas para a prisão em condenações inter-relacionadas, apesar da completa falta de evidências físicas corroborativas para qualquer uma das alegações.
Quase todas essas condenações foram anuladas, incluindo a de um carpinteiro local chamado John Stoll, que passou 20 anos de sua sentença de 40 anos na prisão. Os pais Scott e Brenda Kniffen foram sentenciados a 240 anos de prisão depois que seus próprios filhos foram forçados, através de técnicas de investigação coercitivas de terapeutas, para acusá-los de abuso sexual infantil. As duas crianças mais tarde se retrataram e os Kniffens foram libertados após cumprirem 12 anos de prisão. Quando adultos várias das crianças envolvidas na investigação afirmaram terem sido traumatizadas por seus próprios testemunhos falsos anteriores e pelos danos subsequentes que causaram.
Mas essas crianças não estavam sozinhas; o caso de abuso no condado de Kern foi o primeiro, mas não seria o último, a ficar irremediavelmente fora de controle.
Entre as muitas acusações fracassadas de abuso ritual satânico em creches foi o julgamento da escola McMartin, que se tornou o maior, mais longo e mais caro julgamento da história da Califórnia. Essa investigação começou em 1983, quando um dos pais acusou um dos funcionários da escolinha McMartin, em Manhattan Beach, Califórnia, de abuso.
Durante a investigação policial sobre as alegações de abuso, um grupo sem fins lucrativos de serviço infantil conhecido como Instituto da Criança conduziu exames de 400 crianças que frequentavam a creche. Os exames foram realizados por uma mulher chamada Kee MacFarlane, uma psicoterapeuta sem licença.
MacFarlane não possuía treinamento médico ou psicológico e possuía um certificado de soldagem como sua maior credencial acadêmica; ainda assim, ela e dois outros assistentes não qualificados foram autorizados a conduzir as investigações, usando métodos questionáveis de interrogatório. Esses processos de entrevistas levou a reivindicações de abuso dirigidas a mais membros da equipe. Das 400 crianças, os entrevistadores determinaram que 359 haviam sido abusadas.
As acusações coletadas pelo Instituto Infantil resultaram em um número impressionante de 321 contagens de abuso infantil contra sete membros da equipe da creche por 41 crianças. (Pazder, agora considerado um “especialista” em abuso ritual satânico, estava entre os consultores do caso.). Isso foi o suficiente para que um processo fosse aberto para julgar todos os acusados
O advogado, que a princípio acreditava estar defendendo pedófilos e estupradores, passou a entender a situação e pressionar para que as crianças testemunhassem sobre os abusos que sofreram. Além de revelar os vídeos das “confissões”.
O que se revelou com isso deixou todos espantados. Os vídeos, além de extremamente coercitivos, manipulavam as crianças por premios, usavam bonecos “anatomicamente corretos” (com orgão sexuais visíveis)… mas o pior era a natureza fantástica das alegações. entre a série de denúncias estranhas feitas pelas crianças, foram a de que os donos da creches as jogariam no vaso sanitário e davam descarga, as levando embora pelo cano, que haviam construído túneis subterrâneos secretos para transportá-los para cerimônias rituais, que haviam sacrificado um bebê num ritual e de que podiam se transformar em bruxas e voar, que durante o período de aula elas viajaram de avião para o Havaí pra cerimônias satânicas, sacrifícios de animais e de bebês, etc…
Após seis anos de investigação e litígio de um julgamento de cinco anos, o caso finalmente evaporou devido a uma total falta de evidências. A mãe acusadora original morreu durante o processo e havia sido diagnosticada com esquizofrenia paranóica, as técnicas de investigação usadas pelo Instituto Infantil foram completamente desacreditadas pela comunidade psicológica e, uma a uma, todas as acusações contra os funcionários da creche foram retiradas devido à falta de evidências insuficientes.
Devido à natureza absurda das alegações no caso McMartin, o público gradualmente se tornou cético em relação às alegações de abuso ritual satânico. “Depois de vasculhar o país, não encontramos evidências de cultos em larga escala que abusam sexualmente de crianças”, disse ao New York Times em 1994 o Dr. Gail Goodman, psicóloga que conduziu uma pesquisa em larga escala com investigadores americanos sobre a histeria. Que acusações criminais foram feitas em geral devido a uma mistura de doenças mentais, falsas memórias implantadas durante a terapia e investigações de testemunhas e, mais frequentemente, relatos de pessoas que estavam sendo influenciadas por reportagens histriônicas da mídia sobre abuso ritual satânico .
Há ainda, um documentário recente sobre a histeria causada pelo livro, “Satan Wants You” (2023) que relata como Michelle Remembers lançou e causou pânico nas pessoas, eles entrevistam a irmã da autora, eu cheguei a acreditar que Michelle Pazder foi abusada pelo pastor, que a hipnotizou para ter essas memórias… porém a irmã dela alega que em um trecho do livro, Michelle tem uma visão da virgem Maria, que conversa em francês com ela, uma língua que ela “não conhecia mas mesmo assim entendeu”…porém Michelle não só já havia estudado, como se formou em francês… o ser questionada sobre isso pela irmã alegou que não sabia do que ela estava falando