SP troca livros por material digital: escolas particulares usam obras rejeitadas pelo governo
Colégios como Gracinha, Cervantes e Bandeirantes adotam obras que também estão no programa do MEC que compra materiais para escolas públicas do País
Muitos dos livros didáticos rejeitados pelo governo de São Paulo para a rede estadual são usados por escolas particulares de ponta na capital. O secretário da Educação paulista, Renato Feder, resolveu abrir mão de 10 milhões de exemplares para os alunos do ensino fundamental 2 (6º ao 9º ano) em 2024 para usar apenas material digital. O Estado não precisaria pagar pelos livros, que são avaliados e comprados pelo Ministério da Educação (MEC) para todo o País há décadas.
O catálogo do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) 2024, que foi recusado pelo governo estadual, tem obras de todas as disciplinas do ensino fundamental 2. Há opções de coleções de várias editoras para que as escolas ou redes de ensino escolham as que pretendem usar.
Antes disso, as editoras precisam submeter seus livros a uma equipe de especialistas, que pode aprovar ou não as obras, conforme exigências dos editais. Erros conceituais, desatualização e preconceito são motivos de exclusão imediata.
Os livros oferecidos no PNLD são os mesmos vendidos no mercado privado, com pequenas adaptações de formato exigidos nos editais públicos. Os conteúdos, autores e propostas pedagógicas são iguais. Especialistas acreditam que as exigências do PNLD ao longo das décadas impulsionaram a qualidade do mercado editorial de livros didáticos no Brasil.
O Colégio Miguel de Cervantes, na zona sul da capital, usa para alunos do 6º ao 9º ano a coleção Araribá Conecta, de Matemática (Editora Moderna), que também faz parte do PNLD 2024. O Colégio Bandeirantes, cujos alunos utilizam tablets na sala de aula, pede a versão digital do livro Expedições Geográficas, de Geografia, (Editora Moderna).
A Escola Nossa Senhora das Graças, o Gracinha, na zona sul, adota várias coleções que fazem parte do catálogo do MEC recusado pelo Estado: Geração Alfa, de Língua Portuguesa, Geografia e Ciências (Editora SM), Araribá Conecta, de História, (Editora Moderna) e Telaris, de Matemática (Editora Ática). Esse último também é o escolhido pelo Colégio Oswald de Andrade, na zona oeste, para Matemática em todas as séries do fundamental 2.
No Pentágono, na zona oeste, é adotado o Matemática e Realidade (Editora Saraiva), também no PNLD 2024. Já o Colégio Equipe, na região central, usa no fundamental 2 o livro A Conquista Matemática (Editora FTD).
As escolas particulares também usam diversos livros aprovados para o PNLD em outros anos. A cada edição, o programa compra obras para uma etapa de ensino: infantil, fundamental 1, fundamental 2 e médio. Este ano, o processo é apenas para o fundamental 2.
O diretor do Gracinha, Wagner Borja, disse que estranha a decisão do Estado em um momento em se discute a eficácia do uso do material exclusivamente digital na educação e que a escola mescla livros impressos e ferramentas digitais. O relatório anual da Unesco, divulgado semana passada, recomendou o uso da tecnologia como complementação a outras estratégias na sala de aula, e não como substituição. O documento cita pesquisas que indicam efeitos negativos na aprendizagem quando estudantes têm uso considerado intensivo de tecnologias na educação.
O PNLD de 2024, cujo processo de adesão foi concluído na sexta-feira sem a participação de São Paulo, exigiu também que as editoras disponibilizassem a versão digital dos livros, com exercícios interativos. As obras também têm recursos de acessibilidade, para estudantes com deficiência.
A introdução de livros digitais no mundo é alvo de pesquisa do Instituto Reúna. “Nenhum país fez a substituição dos impressos por livros digitais, os dois materiais convivem”, diz a diretora do Reúna, Katia Smole. “Nenhum deles também trocou material impresso por slides de Power Point.”
A estratégia do governo de São Paulo atualmente é a de aulas organizadas em Power Point, com cerca de 20 slides, que são passados pelo professor em sala de aula. “A aula é uma grande TV, que passa os slides em Power Point, alunos com papel e caneta, anotando e fazendo exercícios. O livro tradicional, ele sai”, disse Feder ao Estadão.
“Não é um livro didático digital. É um material mais assertivo, com figuras, jogos, imagens 3D, exercícios. Ele pode clicar em links, abrir vídeos, navegar por um museu”, completou. Feder também justificou a decisão por considerar os livros do PNLD “superficiais”.
A decisão de São Paulo tem sido criticada por especialistas, editoras e autores. Secretários de educação ouvidos pelo Estadão, que pediram para não serem identificados, também discordaram da decisão do titular no Estado e elogiaram a qualidade dos livros do PNLD.
Em Sobral, no Ceará, cidade que há anos tem os melhores resultados em avaliações nacionais, há uma variedade de materiais didáticos. As escolas usam as obras enviados pelo PNLD, além de livros produzidos pelo Estado e também pela escola de formação de professores da cidade.
Sobral também investe em tecnologia, tem aulas de robótica e materiais digitais. “É a variedade de materiais impressos e da implementação de novas tecnologias que garantem a aprendizagem das habilidades cognitivas”, diz o secretário de educação de Sobral, Hebert Lima.
O PNLD movimenta R$ 1 bilhão e compra cerca de 150 milhões de obras por ano para escolas estaduais e municipais do País. Por ter a maior rede de ensino do País, com cerca de 5 milhões de alunos, São Paulo representa 15% do programa.
Em nota, após a decisão de São Paulo, o MEC informou que o PNLD é “uma relevante política do Ministério da Educação, com adesão atual de 95% das redes do Brasil”. E que a permanência no programa “é voluntária, de acordo com a legislação, aderente a um dos princípios basilares do PNLD, que é o respeito à autonomia das redes e escolas”.
Os livros que fazem parte do programa de 2024 foram avaliados pelo ministério em 2022, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).
“Os principais autores do País, que são os best sellers e estão na rede particular, estão no PNLD”, diz o presidente da Associação Brasileira de Livros e Conteúdos Educacionais (Abrelivros), Angelo Xavier. A Associação Brasileira dos Autores de Livros Educativos (Abrale) também divulgou nota criticando a decisão de São Paulo. “A tecnologia na educação é inegavelmente indispensável nos dias de hoje, mas na dosagem adequada”, diz.