Milhem Cortaz fala de semelhanças com o Wando de 'Os outros', diz que a série transformou sua vida e comenta relação com a família

Cólera, frustração, machismo, ciúmes, intolerância, amor, fragilidade, ambição e desejo são alguns dos ingredientes que compõem o encorpado caldo da história de Wando, personagem de Milhem Cortaz em “Os outros”. Difícil não se impressionar com a atuação visceral do ator na série, que se tornou a mais vista do Globoplay. Ele conta que estava ansioso para se ver na tela e constatar se exagerou na dose.

— Quando assisti aos dois primeiros episódios, tive medo de ver a emoção transbordar e não ter técnica. Quando é muito real, quando não tem o lúdico, quando é muito particular, não é arte. Aí é terapia, é outra coisa. Não funciona como arte.

Essa linha entre realidade e ficção ficou tênue em alguns momentos porque o ator diz ter semelhanças com Wando:

— Eu me vejo nele no fato de ter razão e perder a razão pela forma como se coloca. Isso para mim foi um tapa na cara, porque é onde eu mais erro. O personagem não tinha como não ter isso, porque ele é assim. Fui obrigado a me enxergar mais do que me enxergo diariamente, a me expor dessa forma tão íntima. Eu tinha medo de não virar arte, mas, de alguma forma, consegui colocar uma lente de aumento e fazer um olhar mais artístico. Me identifico nisso, na falta de paciência com quem exerce o poder fora do tom. Sou filho de Xangô. Às vezes, com esse senso de que estou certo, é onde me coloco errado e acabo perdendo a razão, me ferrando na situação. Estou tentando ter mais paciência. Vocês não me conhecem tanto, mas, quando eu vejo, penso: “Caramba, eu botando um negócio tão particular ali”, “Nossa, como sou ridículo”. O senso de justiça às vezes me faz meter os pés pelas mãos, e parece que tenho 11 anos. Mas não tenho a agressividade dele.

O ator lembra que estava “à flor da pele” quando fez a produção, no ano passado, o que contribuiu para o resultado.

— É o trabalho mais difícil que já fiz na televisão e um dos trabalhos mais difíceis da minha vida. Falar desse cara é de uma importância gigantesca para a sociedade e também para mim. Aprendi muito com o Wando. Eu estava num período muito delicado da minha vida quando peguei a série. O poeta só cria na dor. Não conheço poeta feliz (risos). A gente não precisa sofrer, mas, se estiver, já é um passinho adiante, uma ajuda, né? — afirma ele, sem entrar em detalhes sobre a fase que atravessava durante as gravações: — A pandemia fez estragos ao meu redor. E aí eu tinha que lidar com isso. Foi complicado. Mas me senti vitorioso quando saí. Apesar de não estar preparado para tudo aquilo, eu tive responsabilidade suficiente para saber lidar com as coisas.

Cortaz considera que a série é um “divisor de águas” na sua carreira:

— Eu estava um pouco cansado, perdendo aquela magia, aquela vontade de contar histórias, aquele romantismo. As preparadoras de elenco curaram meu corpo. Eu descobri nessa preparação que o desgosto que estava tendo com a profissão, na realidade, era comigo. Meu corpo, minha voz e minha criatividade estavam estagnados. Fizeram com que eu me apaixonasse de novo pelo teatro, que eu não fazia há dez anos. A série me fez retomar a paixão e a vontade de buscar ser cada vez melhor para ter mais repertório e sair do lugar-comum.

Além de poder abordar, através do personagem, temas importantes como violência doméstica, ele explica que se interessou por um outro aspecto da história:

— Entendo que as pessoas se agridam e que a violência está entre elas, mas acho que na verdade a série fala do quanto é difícil viver. O tempo inteiro a gente traz esperança, mostra que a vida é boa e que uma situação ou outra atrapalha. Não! A vida é difícil de viver e te coloca no limite. Quando li o roteiro, quis falar não só sobre o Wando, mas sobre como não é fácil viver. O cotidiano não é simples. Você tem que estar preparado para ele, com equilíbrio espiritual para se relacionar com as pessoas que estão vivendo a mesma vida. Aí você pega essas pessoas e coloca num condomínio. O condomínio que estamos retratando, para essas pessoas que estão subindo de classe social, é um sonho. Dentro de um sonho, você idealiza e tem certeza. E então vai se frustrar. O grande pecado do Wando, entre tantos outros, é ter tanta certeza na vida. É quando a gente mais erra. Quando esse sonho não é alcançado e você não tem estrutura familiar, psicológica e de educação para dar suporte, você se perde completamente.

Uma das cenas mais comentadas foi a do primeiro episódio, em que o personagem vai com uma barra de ferro até o apartamento de Cibele (Adriana Esteves) com a intenção de atacar a vizinha:

— Aquilo foi minha grande homenagem ao filme que marca a minha vida até hoje, “O iluminado”. Quando li aquilo, pensei: “O mundo é muito generoso comigo”. A agressividade meus personagens de alguma forma já tiveram. Não é um lugar difícil de acessar. Até por isso, não quis uma coisa tão realista. O que me chamou atenção foi fazer uma homenagem artística.

Como observado pelo ator, Wando é mais um dos papéis marcados pela violência. Nesse rol, está o capitão Fábio do filme “Tropa de elite”, estrondoso sucesso. Ele avalia a repetição no perfil dos personagens:

— Não me incomoda de jeito nenhum. Já me incomodou. Descobri que na verdade o grande super-herói da minha vida é meu avô. Depois que fui o pai do Lula (no filme “Lula, o filho do Brasil”), saquei que todos os meus personagens de alguma forma têm meu avô. Era um homem da roça, semianalfabeto, que construiu metade de Guarapari, no Espírito Santo, tanto como pedreiro quanto como engenheiro. Ele era um homem bruto, mas que também tinha uma inocência. Todos os meus personagens têm um pouquinho dessa agressividade dele. Logo depois de “Carandiru”, me chamaram muito para esses papéis. Quem me tranquilizou foi o Marçal Aquino (escritor). Ele disse: “Se você for fazer assassino a vida inteira, saiba que tem pelo menos uns 150 diferentes. Então, você tem 150 tipos para fazer”. Achei um humor tão grande para enxergar isso. E pensei: “Me levo muito a sério”. A pior coisa que um artista pode fazer é se levar muito a sério. Ali, eu aceitei todos os trabalhos e desencanei. Eu nunca priorizei o personagem. Sempre priorizo boas histórias. Quando gosto do roteiro, quero fazer. Aí eu me divirto mais, me levo menos a sério.

Casado com a atriz Ziza Brisola há 21 anos, tendo 23 de relação, Cortaz é pai de Helena, de 14, que acompanha atenta sua trajetória e tem opinado a respeito da atuação em “Os outros”. O ator diz que procura manter um diálogo “muito aberto” com a filha:

— Ela é uma menina que tem uma cabeça muito boa e no lugar. Pela experiência que tive, pelo dia a dia, pelo que vejo, acho que vai ser uma passagem bem tranquila. Ela é muito esclarecida. Essa geração explica coisas pra gente. Parece que eles vêm com um chip. Lembro uma vez que eu e a Ziza estávamos falando sobre sexualidade, discutindo o assunto. Ela abriu a porta e perguntou: “Ainda sobre isso? Pelo amor de Deus, gente”. A gente é cringe. Se perguntar para minha filha se alguém é gay, lésbica, ela acha que é uma pergunta démodé, cafona. Ninguém pergunta isso. Não existem mais essas caixas. Droga, por exemplo, é tão distante das nossas conversas diárias. Não é realmente a nossa preocupação. Tenho outras, como o excesso de informações, de onde elas vêm e o que provocam nela.

O ator inclusive já declarou em entrevistas que teve vício em cocaína na adolescência. Segundo ele, abrir essa experiência era uma forma de tentar ajudar outras pessoas. Mas acabou desistindo de falar do passado depois de um pedido da mãe:

— Num certo momento da vida, minha mãe me puxou num canto e falou: “Por mim, não fala mais sobre isso. Não é legal, não gosto de ouvir e não vai ser bom para você futuramente. As empresas não vão querer te apoiar, não vai repercutir bem, apesar da sua vontade e generosidade para fazer o bem”. O que aconteceu foi que eu fui fazer o “Ponto de virada” (programa da TV Cultura). Falei da minha chegada na Itália e do meu encontro com Deus. Nunca mais usei na vida. Bombou. Todo mundo viu essa história. Foi nesse dia que minha mãe falou: “Pelo amor de Deus, não fala mais sobre isso”. Aí eu parei de falar. Numa entrevista ao podcast “Embrulha sem roteiro” (em 2021) eu voltei a falar, mas de forma muito inserida no assunto. Acho que não repercutiu mais.

O personagem dele é muito bem interpretado, nossa. Não conhecia o ator.

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Lenda
Acabei de ver os ultimos eps mds