Não sou adepta das maratonas. Nem as que exigem esforço físico nas corridas de rua, nem as que nos prendem à frente da TV vendo episódios enfileirados de uma história num mesmo dia. Mas, com “Os outros’’, série que já é a mais vista do Globoplay em 2023, assisti a seis de uma vez. Mais dois na noite seguinte.
Caso o leitor ainda não tenha conferido, instigo a fazê-lo. Como tem acontecido com muita gente, há grandes chances de que você também seja fisgado pelo enredo e pelas figuras retratadas ali. Não sem se incomodar, creio.
Sabe aquele vizinho aparentemente comum que chega a tomar uma atitude extrema e choca todo mundo? Sabe aquela pessoa com quem você cruza todo dia e que comete atos execráveis até você se ver numa situação em que está agindo de modo ainda pior? Tudo isso que os outros podem ser capazes de fazer e que nos amedronta está ali na série. Mais atormentador, no entanto, é acompanhar o desenrolar da trama e perceber que a gente também pode se tornar o agente do caos. E no mundo atual, em que não há disponibilidade para o diálogo e para a convivência com o diferente, ninguém está imune a essas ameaças, independentemente de classe social ou do poder aquisitivo.
É num grande condomínio fechado, comum na Zona Oeste do Rio e em várias cidades do Brasil, que os conflitos se dão. E, mais que isso, todas as crises interferem no ambiente familiar, essa instituição tão valorizada por nós e que, do modo como a idealizamos, nos traz uma sensação de proteção e segurança. Tudo começa num corriqueiro jogo de futebol na quadra. Dois adolescentes brigam, um espanca o outro, e a incapacidade de resolver as coisas na conversa, o espectador vai perceber, não é exclusividade desses jovens em formação. Suas mães e pais também partem para o grito, para a cusparada na cara, para a compra de uma arma de fogo só para o caso de última necessidade… Me digam, isso é coisa de ficção?
Série ‘Os outros’ em ilustração — Foto: André Mello
Ficou na minha cabeça a frase de um casal de amigos, pais de uma linda garotinha ainda criança, opinando sobre a série. “Muito boa, mas não conseguimos avançar, é forte demais’’. Compreendi a fala deles. Incomoda mesmo ver que o perigo pode morar ao lado ou até debaixo do mesmo teto. Inquieta mesmo constatar que desgraças fazem vítimas na tão frágil classe média brasileira e não apenas nas periferias com lares desestruturados.
Quão estruturada, aliás, mostra ser sua família quando você se depara com um filho brigando com um colega na escola? Já deu piti no colégio culpando o professor e a direção? O que você seria capaz de fazer tendo uma arma na mão se visse seu filho sendo vítima de uma situação que julga injusta? Numa sociedade que incentiva cada vez mais a cultura da força no lugar da palavra, “cidadãos de bem’’ podem se tornar agressores, criminosos, assassinos. Em casas que acreditam que um meio eficaz de educar é batendo e berrando, crianças podem se tornar futuros agressores.
Eu poderia listar aqui várias razões para que você veja “’Os outros’’. Em relação à qualidade técnica e de texto, a produção, uma criação de Lucas Paraizo com direção artística de Luisa Lima, confirma mais uma vez por que somos referência em audiovisual. Sobre as interpretações, o elenco praticamente todo poderia ser citado. Adriana Esteves é irretocável fazendo uma mulher sufocada e sufocante; Milhem Cortaz provoca o sentimento inicial de repulsa para depois despertar nossa reflexão em relação aos tipos masculinos tão comuns, presos aos graves erros de suas criações machistas; Maeve Jinkings encontra o tom perfeito da dona de casa que trafega entre a submissão e a tentativa de manter a lucidez em sua rotina de luta. Mas o maior mérito da série é tocar no ponto nevrálgico universal: todos temos nossos vários lados, somos bons e ruins e podemos despertar para o melhor ou para o pior. O que pode nos salvar ou botar tudo a perder é a maneira como administramos isso, sendo bons síndicos de nossos sentimentos e de nossas ações.