Extra: Brasil agro é tão forte que virou tema de novela, mas caipiras na TV ainda são raros se não forem astros sertanejos

Que delícia é a época das festas juninas! E não me refiro apenas aos pratos típicos, que ganham espaço em mesas, cardápios e barracas para nos deliciarmos por aí. Falo também do tanto que é bom ver caipiras se multiplicando por festas e quermesses, mesmo que boa parte deles seja fake e se fantasie com o traje xadrez sem conseguir segurá-lo com autenticidade e personalidade. Faz parte da brincadeira. Caipira original de fábrica que sou, acho ótimo ver nossa turma brilhar. Porque protagonizar, convenhamos que já protagonizamos há um bom tempo. Ou você não se lembra da frase “o Brasil é agro’’, repetida constantemente? É do agro que vêm grandes produções, grandes receitas, o incremento de nossa economia… A ponto disso virar até história de novela, está aí “Terra e paixão’’ para confirmar. Capítulo sim, capítulo também, os personagens estão lá falando da cobiçada terra vermelha ou terra roxa, onde se plantando tudo dá. Mas, se somos muitos e tão relevantes, por que ainda nos veem com um olhar um tanto estereotipado? Por que estranham nosso modo de falar?

Costumo dizer que sofro de crises de identidade. Vivendo no Rio há 18 anos, basta eu pronunciar duas frases para um carioca dizer: “Você não é daqui, né?’’. Meu R retroflexo me entrega. Ao mesmo tempo, quando visito a família no interior de São Paulo, ouço do pessoal de lá que “já virei carioca’’. No meu vocabulário, o biscoito já substituiu a bolacha, e o verbo botar é mais usado do que colocar. Caraca, meu?! Quem sou? Sou uma mistura do que tenho vivido e experimentado, tentando manter o melhor de onde vim e incorporando o melhor de onde escolhi morar! Mas nossas raízes são um troço mais forte do que imaginamos. Eu, por exemplo, não tenho o mínimo interesse em mudar meu sotaque. Só tento disfarçar quando entro nos táxis, num esforço de não ser extorquida no valor final da corrida. E aí, quando vejo a atual trama das nove e sinto que muito do que é mostrado ali soa familiar para mim, comprovo que a questão da identificação é importante mesmo.

Todo mundo quer se ver e se sentir representado. E não de maneira estereotipada. Falo dos tipos do interior, mas poderia lembrar também dos nordestinos, que inúmeras vezes já questionaram o modo como eram retratados em obras de ficção, como se o cara que nasceu no interior de Pernambuco falasse do mesmo jeito daquele que nasceu em Salvador, na Bahia. Felizmente, de uns anos para cá, esse olhar equivocado parece que passou a ser revisto, e notamos uma atenção maior no trabalho de preparação de atores, levando em conta as peculiaridades dos diferentes estados.

Caipiras e a força do agro em ilustração — Foto: André Mello

Caipiras e a força do agro em ilustração — Foto: André Mello

É uma satisfação ligar a TV e ver artistas do gabarito de Tony Ramos e Gloria Pires no horário nobre incorporando esses tipos interioranos com total naturalidade, sem exageros. Débora Falabella é outra que defende sua personagem no tom exato, num trabalho em conjunto com caracterização e figurino que tornam sua Lucinda uma mulher que a gente encontra numa empresa influente de uma pequena cidade. Sei que são profissionais que já mostraram ao longo de suas trajetórias serem capazes de defender diferentes papéis com maestria, mas nem por isso eu deixaria de reverenciá-los.

Agora se nós, caipiras, somos tantos, por que até hoje há tentativas de nos homogeneizar? Ainda tem gente preocupada com neutralização de sotaque? Querendo que todo mundo fale igual, anulando diferenças regionais que em nada prejudicam a comunicação e, pelo contrário, são um registro do povo diverso que somos? Onde está nosso R em emissoras nacionais de rádio e televisão? Escondido ou disfarçado em aulas de fono, talvez…

Esperta me parece Sabrina Sato, que ao despontar na mídia viu seu R puxado ser tratado de forma jocosa e, com bom humor, fez disso uma de suas marcas, carregando ainda mais no caipirês. Mas nossa comunidade é imensa. Por que ela se destaca quase que sozinha na multidão?

Deixem os caipiras falarem. E não resumam esse grupo aos músicos da indústria sertaneja que, cheios de dinheiro, já podem dizer tudo o que bem pensam. Alguns, inclusive, proferindo absurdos. Nem todos somos assim. Por trás do R arrastado, há muito a ser dito, mostrado e oferecido. Bem além do tipo popularizado por Mazzaropi, um jeca que merece todo nosso respeito, por sinal. Não subestimem os caipiras.