CADÊ O RIO? Globo deixa 'trunfo' fora do ar e aposta em cenários escanteados em nova fase

Embora seja reconhecido principalmente como o cenário das Helenas de Manoel Carlos, o Rio de Janeiro é carta marcada em boa parte das novelas da Globo. A capital do Estado foi a principal ambientação de cerca de 45% dos folhetins desde 1965. Curiosamente, porém, ela foi escanteada neste ano: nenhuma das três tramas que estão no ar se passam na Cidade Maravilhosa.

No Rancho Fundo é ambientada em alguma cidade sertaneja do Nordeste (o autor, Mario Teixeira, não especificou o Estado), embora tenha sido gravada no interior de Minas Gerais. Família É Tudo é ambientada em São Paulo; enquanto Renascer se passa na região de Ilhéus, na Bahia.

Mas uma situação é raridade na história da Globo. O Rio de Janeiro é quase onipresente na dramaturgia da emissora, até pela facilidade na logística das gravações --os Estúdios Globo, sede da produção audiovisual da empresa, ficam na cidade. Ou seja: não é necessário fazer grandes deslocamentos com o elenco e a equipe técnica no caso de gravar externas in loco.

O Notícias da TV fez um levantamento com as 334 novelas já lançadas pela emissora, usando como base o Memória Globo, arquivo virtual da instituição. Destas, 150 foram ambientadas na cidade do Rio. No Estado, foram 165.

É um número muito maior do que a segunda colocada no ranking, a cidade de São Paulo, que detém apenas 59 novelas. Quando o Estado entra em voga, o número sobe para 78. O interior de São Paulo costuma servir de ambientação para tramas rurais, sobretudo as de época, que levam em consideração a produção cafeeira paulista entre os séculos 19 e 20.

A soma do eixo Rio-São Paulo revela um déficit da emissora para com as outras regiões. Afinal, o Sudeste do Brasil --composto por Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo-- compreende cerca de 80% das novelas.

Claro, algumas destas obras tiveram cenas em outras regiões. Em Família (2014), por exemplo, ambientou sua fase inicial em Goiânia (GO). Travessia teve parte de sua trama ambientada em São Luís (MA). E Gloria Perez foi mestre em fazer uma ponte aérea do Rio com outros países, como Marrocos, Estados Unidos, Índia e Turquia. Mas a maior parte das sequências destas obras foi relacionada a algum Estado do Sudeste.

Se levarmos em consideração as novelas ambientadas majoritariamente em outras regiões, os números são muito menores. São 26 novelas no Nordeste, sete no Centro-Oeste, oito no Sul e apenas três no Norte.

Ficam de fora 24 novelas. Parte delas foi ambientada em outros países, ficcionais ou não --caso de A Gata de Vison (1968), Que Rei Sou Eu? (1989) e Kubanacan (2003). Algumas tiveram como cenário cidades fictícias cuja região não foi especificada, como Padre Tião (1965), Fera Ferida (1993) e O Beijo do Vampiro (2002). Também há casos em que não existem registros da ambientação, como Pecado de Mulher (1964) e Paixão de Outono (1965).

Centro das atenções desde os primórdios
De qualquer maneira, a primazia do Sudeste é absoluta não só na produção ficcional, mas na TV como um todo. E muito disso está relacionado à própria história da TV, como explica Lucas Martins Néia, autor do livro Como a Ficção Televisiva Moldou um País: Uma História Cultural da Televisão Brasileira.

Quando as primeiras emissoras de TV foram lançadas, na década de 1950, todas tinham abrangência local. Foi só com o advento da transmissão via satélite, em 1974, que elas passaram a ter alcance nacional. Com isso, elegeu-se o local em que as emissoras já estavam estruturadas para ser a cabeça de rede. Também foram criadas afiliadas, para a construção de um conteúdo local, mas que demandasse menos em termos de tecnologia.

A questão é que as tais “cabeças” ficaram exatamente no eixo Rio-São Paulo. E, por serem os locais com mais estrutura, as produções de ficção acabaram sendo realizadas ali. As afiliadas não conseguiriam arcar com a demanda de uma novela, por exemplo.

Claro, o fato de as emissoras terem sido lançadas primeiramente nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo não é coincidência. “São os polos econômicos do país. A gente teve o Rio de Janeiro por muito tempo como a capital da República. São Paulo, a partir do século 20, se torna também esse centro econômico. É onde o capital está girando, e isso vai ser interessante para as emissoras”, afirma ele, em entrevista à reportagem.

Em contrapartida, a própria televisão sedimentou o imaginário do resto do Brasil quanto a essas capitais. E também reforçou o imaginário de outras localidades a partir do ponto de vista sudestino.

“A TV vai funcionar como um agente importante dessas dinâmicas, como a de a gente imaginar o Nordeste como uma unidade. Sendo que não é, são nove Estados, e dentro de cada um você vai ter diferenças regionais. Só que muitas ficções televisivas vão se utilizar dessa ideia de Nordeste [único], que está presente na literatura e na cultura de modo geral”, completa.

Esse olhar sudestino atrapalha até na conexão do público de outras regiões do Brasil com o que é apresentado nas novelas. “Houve um tempo em que a Globo começou a fazer novelas que tinham algum núcleo, ou uma primeira fase, ambientada em outros locais. Como a Goiânia de Em Família, ou Salvador em Segundo Sol [2018]. Eram praças em que a Globo não estava bem de audiência naquele momento, e houve uma tentativa para recuperá-la, mas muitas das vezes o que acabou acontecendo foram críticas”, exemplifica ele.

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