Claudia Souto, autora de Volta por Cima, defende: "As pessoas querem ver novela com cara de novela"

“Volta por Cima é o meu texto mais maduro”, diz Claudia Souto. Responsável pela atual novela das 19h, ela conclui seu terceiro trabalho como titular no horário – o último capítulo vai ao ar na semana que vem, dia 28. “É uma virada para a minha carreira, porque hoje eu posso dizer: entendi quem eu sou. Com esta novela, vou para um outro degrau no meu entendimento como autora”, define, em entrevista exclusiva ao NaTelinha.

Criadora de Pega Pega (2017) e Cara e Coragem (2024), além de ter sido colaboradora de outras quatro novelas das sete, Claudia Souto já conhece as dores e as delícias de escrever para essa faixa. Ela percebe que o espaço, mais dedicado às comédias, também permite abordar temas complexos, como masculinidade e as várias formas de diversidade.

Com Jão (Fabrício Bolivera) e Madalena (Jéssica Ellen) como casal principal e outros atores negros em papéis de destaque, Volta por Cima integrou um 3movimento na dramaturgia da Globo em busca de maior representatividade racial. A escritora também não abre mão de certas abordagens, como o romance entre Gigi (Rodrigo Fagundes) e Bernardo (Rodrigo Fagundes). O beijo entre eles, na semana passada, foi uma “vitória” para a novelista.

“Acho que a sociedade deu um passo atrás com o conservadorismo. Já tínhamos avançado com posturas e pautas mais progressistas, mais livres. E vimos o país dar um freio nisso”, percebe. Ela diz que, nos bastidores da Globo, não sofreu nenhum tipo de censura – segundo ela, o corte de uma cena, que gerou polêmica em dezembro, foi devido à classificação indicativa. “Tive total liberdade para fazer as minhas três novelas”, garante.

Por vezes, Volta por Cima superou a audiência de Mania de Você, exibida às 21h. O trabalho bem-sucedido e elogiado pode ser a garantia de que a autora faça, em breve, sua estreia no horário nobre. Esse não chega a ser um objetivo de Claudia, mas ela não descarta a possibilidade. “A história tem que ser soberana, muito mais do que o horário”, explica. “Preciso achar a história e ver onde ela se encaixa. Até agora, procurei histórias das sete.”

“Se for uma novela em que eu vou querer me aprofundar mais, vou falar: ‘Vem cá, tenho uma coisa aqui para as 21h. Vocês querem?’”, antecipa Claudia, que busca referências nos clássicos dos anos 1970 e defende a valorização do gênero. “Por mais que as novelas tenham se aproximado do streaming e vice-versa, as pessoas querem ver novela com cara de novela.”

Leia a entrevista com Claudia Souto, autora de Volta por Cima

NaTelinha: Como Volta por Cima se insere na sua obra? Quais foram os maiores diferenciais em comparação com suas outras novelas, Pega Pega e Cara e Coragem?

Claudia Souto: Volta por Cima é o meu texto mais maduro. Quando comecei minha carreira como autora titular, ainda estava me conhecendo. Passei por vários formatos na televisão desde os anos 1990 e fui para a dramaturgia colaborar com o Walcyr [Carrasco] em Sete Pecados (2007). A novela já estava no ar e não havia tido uma “decolagem” boa. Ele pediu mais uma colaboradora, que fui eu. A gente se deu superbem, e ele reverteu a situação com o público.

Ali, já fui entendendo essa coisa de escrever junto com o público, com as expectativas, mudar o que foi preciso. Walcyr foi um mestre. Fiquei com ele por cinco anos, em três novelas, todas das sete – em Caras e Bocas (2009) e Morde e Assopra (2011). Depois, colaborei com o Daniel Ortiz em Alto Astral (2014), também às 19h.

“Então, esse é um horário em que eu já me sinto em casa. Já sei as dificuldades e também as delícias que existem nas novelas das sete, como a liberdade de criação.”

A primeira novela é aquele filho muito ansiado, que a gente quer muito e sonha com ele por muito tempo. Entre apresentar a sinopse até a realização de Pega Pega, foram cinco anos, de 2012 a 2017. E eu ainda estava me conhecendo, naquele momento. “Eu sei ajudar o outro a fazer, mas quem sou eu enquanto autora, enquanto expressão, falando com esse país e com o resto do mundo?”

Já Cara e Coragem foi uma novela muito atípica. Já tinha aprendido bastante coisa sobre mim e sobre estar à frente. Só que, por conta da pandemia, não foi uma obra aberta, não pude ouvir e dialogar com o público. Estreei com 70 capítulos gravados e 120 escritos sem poder voltar atrás, porque tinha que entregar e andar para frente, porque não sabia se alguém ia cair doente, se vai ter que parar, substituir. Gravamos em um outro mundo, que era desconhecido e perigoso.

Não pude ouvir o público para fazer os ajustes que, hoje, eu faria, mas ainda assim Cara e Coragem é uma novela de que eu me orgulho muito, porque tem uma história muita bonita, com um tema pelo qual sou fascinada, dos dublês, e que também nos levou ao Emmy [indicada como melhor telenovela]. Foi um reconhecimento de que a história era poderosa.

O que eu aprendi em Pega Pega e em Cara e Coragem desembocou em Volta por Cima. Quis fazer uma novela típica das sete e uma novela deste momento. Sem o fantasma da pandemia, pude dialogar não só com o público, mas com os atores, a direção e todos os profissionais, criando em cima do que eles estão propondo.

“É uma virada para a minha carreira, porque hoje eu posso dizer: entendi quem eu sou. Entendi que autora é essa, o que eu quero dizer, como eu quero dizer. As três novelas são muito diferentes em seus universos, mas olho para as três e consigo ver que são da mesma autora, têm a mesma pegada, o mesmo objetivo, a mesma maneira de dizer as coisas. Com tramas diferentes, mas similares na emoção.”

Pude jogar junto com o público e entender também onde eu posso arriscar. Arrisquei com mais maturidade por causa das experiências anteriores. Com esta novela, vou para um outro degrau no meu entendimento como autora.

NaTelinha: Em quais pontos foi possível arriscar?

Claudia Souto: Por exemplo, com um tema que ensaiei um pouco nas outras, mas desta vez fui mais a fundo, que é a questão da masculinidade: as discussões que o Jão (Fabrício Boliveira) e o Sidney (Adanilo) tiveram; o Edson (Ailton Graça) procurando uma terapia para tentar entender esse ciúme que ele tinha da Rosana (Viviane Araújo); e Gigi (Rodrigo Fagundes) entendendo que, mesmo homossexual, o afeto era mais difícil para ele que a festa e a pegação.

Falei da masculinidade tóxica, não só com o Gerson (Enrique Diaz), que é o extremo disso, que chega a trancar suas mulheres em casa; mas também com o Sidney, que acha que pode ficar jogando charme para todo mundo sendo comprometido; e com o Chico (Amaury Lorenzo), que ficava duas ao mesmo tempo, fazendo uma de palhaça e submetendo a outra a esse lugar horroroso de ser “a outra”.

Tudo com muito humor, mas nunca deixei de dizer: ‘Olha, tem um problema ali’. Nesta novela, pude arriscar mais nesse debate sobre o masculino, que eu considero uma questão social nesse país cheio de feminicídio, em que as mulheres lutam por seus lugares e para terem paz.

“Tive uma resposta muito boa, porque aumentamos o número de homens assistindo à novela. O universo da contravenção já era um pouco convidativo para o telespectador, mas eles vieram também assistir a esses debates.”

Coloco luz no masculino porque acho que a novela já é, por si só, um veículo feminino. A heroína carrega, a Madalena (Jéssica Ellen) é a grande dona da história. Neste lugar, jogar luz no masculino ajuda as próprias mulheres, porque não estamos sozinhas no mundo. Ao contrário, o grande problema da mulher no mundo é esse masculino que, na maioria das vezes, oprime.

Também considero que arrisquei quando Gigi começa como uma “bicha má”, com uma lígua ferina, vivendo na pegação, e depois se humaniza através do amor. Ele se apaixona por um cara comum, psicólogo, bonito, mas não é só isso que o atrai no Bernardo (Bruno Fagundes). É justamente a escuta, ele ser um cara de verdade, não só uma fantasia.

“Acho que a sociedade deu um passo atrás com o conservadorismo. Já tínhamos avançado com posturas e pautas mais progressistas, mais livres. E vimos o país dar um freio nisso. Fui construindo com delicadeza para que esses personagens fossem bem recebidos pelo público, e eles têm uma torcida enorme.”

O beijo entre eles também foi uma conquista, porque foi um beijo “na luz”. Em Cara e Coragem, também houve um beijo [entre Hugo e Enzo, personagens interpretados por Raphael Theophilo e Pablo Sanábio], mas foi num teatro, num fundo de cena, na contraluz. Então, conseguir que Gigi e Bernardo se beijassem na câmera, na luz, às sete da noite, foi também uma vitória.

NaTelinha: Hoje, as novelas estão muito preocupadas em não afastar o público mais conservador, e alguns autores têm reclamado sobre isso. Em Volta por Cima, você teve liberdade para contar as histórias que você queria contar?

Claudia Souto: Não tive nenhuma orientação nesse sentido. A história do Gigi já estava definida desde o início na sinopse. O que eu tenho é um cuidado de entrar na casa dos outros neste país que está mais conservador. Então, entro pedindo licença. “Vamos trazer um assunto aqui para a sua degustação, sua reflexão e vamos falar disso amorosamente.”

“Como já sou essa autora que quer entrar na casa das pessoas respeitosamente, mesmo trazendo as pautas que vão incomodar, porque não abro mão delas, acho que a casa [a Globo] lê, entende e diz ‘ok’.”

A casa não se preocupa com isso sozinha, ela tem uma legislação a cumprir. A novela das nove tem uma liberdade maior, porque a classificação indicativa é para pessoas mais velhas. Na novela das sete, a família inteira está na sala. Como sou deste horário desde sempre, conheço esse público e sei que ele está mudando os hábitos, mas essas pessoas não mudaram quem são. Sei que escrevo para a criança até a terceira idade. É o horário mais abrangente, então tenho que fazer tudo com muita delicadeza.

Essa orientação vem de mim mesma e foi acolhida. Ninguém me falou ‘Não vamos por aí’. Não teve isso. Tive total liberdade para fazer as minhas três novelas.

Em Volta por Cima, tiraram uma piada com o trisal [envolvendo Chico, Gigi e Roxelle, personagens de Amaury Lorenzo, Rodrigo Fagundes e Isadora Cruz]. Isso saiu na imprensa, mas era uma piada e [o corte] tinha a ver com a classificação indicativa, que precisa ser respeitada. Não era uma coisa interna do tipo ‘Não vamos falar disso’.

NaTelinha: A TV tem lutado para manter a audiência concorrendo com streaming e outras plataformas. Você acompanha os números? Como você avalia a audiência de Volta por Cima no atual contexto?

Claudia Souto: Acompanho diariamente as principais praças, com ênfase em São Paulo e o PNT [Painel Nacional de Televisão], que são balizadoras. Também gosto de acompanhar as outras praças, acho importante. Para a minha surpresa, as capitais com maior audiência, em que a gente dava diariamente 27 ou 28 pontos, eram Salvador e Curitiba, que têm culturas tão diferentes e eram as cidades onde a novela tinha mais audiência.

Hoje, temos que lidar com o futebol, que antes passava só na Globo, após as novelas, e hoje está na concorrência, na internet. É um fenômeno novo. Também passamos pelo final de ano e o Carnaval. Também por conta de todas as ofertas de entretenimento e dramaturgia dos outros veículos, é um desafio maior, hoje, você manter o seu público fiel por quase um ano.

“Dito isso, também acho que a medição de audiência está defasada, porque agora as pessoas assistem às novelas em outros horários, no streaming. No caso das novelas das sete, tem a reprise de madrugada. Tem um outro hábito, e esse novo hábito não está sendo computado na totalidade, o que não permite dar a dimensão da audiência da novela, que é muita gente.”

NaTelinha: Volta por Cima já repercutia antes mesmo da estreia. Houve aquela brincadeira que se chamaria “A Vida é um Ônibus”, algo que foi usado em cena. Como as redes sociais influenciaram a sua criação e os rumos da história?

Claudia Souto: Essa foi a primeira novela em que pude ouvir mais. Em Pega Pega, eu não estava nas redes, e o retorno que eu tinha era a pesquisa que a Globo me mandava. Em Cara e Coragem, tentei estar junto com as redes, que entraram mais na nossa vida com a pandemia. Como era uma novela fechada, não tinha o que fazer, então me dava um pouco de angústia quando eu via que poderia ter ido por um caminho, mas já estava tudo gravado, editado e pronto para ir ao ar. Pude mexer só no final, menos de um terço para o desfecho.

Com a Volta por Cima, pude acompanhar desde o início. Desde antes da estreia. Eu me diverti muito com essa história de “A Vida é um Ônibus”! Era maravilhoso! Alguns amigos acharam que era verdade, porque começou a sair a escalação de elenco. Diziam: ‘Nossa, os nomes são ótimos!’. Eu respondia: ‘Gente, vocês acham mesmo que eu ia dar um nome de personagem de Maria Catraca, de Darsinal?!’ (risos). Eu até gosto de assistir farofa, e até fiz muitas com o Walcyr [Carrasco], mas não sou autora de farofa!

Quando comecei a usar os memes na novela, tive que usar “A Vida é um Ônibus”. Salpicar um pouco como se fosse bordão até que virou o samba-enredo da Escola de Samba da Vila Cambucá.

“Tinha saído do X/Twitter quando a empresa foi comprada pelo Elon Musk, por uma questão de… ‘Não vou ficar aqui!’. Com a novela, eu voltei, mas estou lá incógnita. Sou uma pessoinha daquelas que assistem à novela e usam a hashtag.”

Fico vendo o que as pessoas postam e me divirto muito com os memes, com as citações. Aproveito bastante para ver o que está funcionando e o que as pessoas não gostam. Nesta novela, as redes sociais me ajudaram bastante.

NaTelinha: Depois de três novelas das 7, talvez seja um caminho natural que você escreva uma novela das 9. Isso está nos seus planos?

Claudia Souto: Não é uma coisa que eu planeje. “Ah, agora vou fazer uma das nove. Ou vou fazer uma das seis. Ou vou continuar fazendo novela das sete”. Preciso achar a história e ver onde ela se encaixa. Até agora, procurei histórias das sete. Primeiro porque era o meu lugar mais conhecido, e segundo porque era o desejo da casa [a Globo] que eu fizesse as novelas das sete.

“Eles não me disseram nada [sobre a mudança de horário], eu também não estou pensando a respeito… Mas a história tem que ser soberana, muito mais do que o cargo ou o horário, porque é ela que vai dialogar com o público.”

Eu vou dar uma descansada agora, tirar férias. Quando eu começar a pensar, vou pensar de novo em quem é esse país que está me olhando e para o qual eu vou falar. Porque o país de Volta por Cima é muito diferente do país de Pega Pega, por exemplo. Tenho que olhar para o país e olhar para mim, porque todas as minhas histórias começam com a pergunta: “Qual é a discussão que eu quero botar na roda?”.

A ética é um tema que permeia a minha carreira. Em Pega Pega, era uma ética de funcionários e patrões. Em Cara e Coragem, de forma bem subliminar e lúdica, havia a dualidade que estávamos vivendo: enquanto as armas eram liberadas, as vacinas, não. E em Volta por Cima, a ambição dentro das famílias. Não importa se é a fortuna do Gugu Liberato ou um jogo de panelas, um terreno de fundo de quintal… Queria falar disso.

“Se for uma novela em que eu vou querer me aprofundar mais, vou falar: ‘Vem cá, tenho uma coisa aqui para as 21h. Vocês querem?’. Se eu achar que não, que ainda quero continuar ‘mais leve’, continuo às 19h.”

NaTelinha: Já há algum projeto em vista na Globo? Algum tema que te instigue, que você quer abordar no próximo trabalho?

Claudia Souto: Ainda estou muito envolvida em Volta por Cima e, antes de uma nova novela, quero fazer coisas curtas, ainda não sei se para o cinema ou o teatro. Novela é um universo que você monta e desenvolve durante um ano, é muita história junta e de longo prazo. Queria fazer alguma coisa curta antes e, sobretudo, consumir arte, voltar a ler, ver filmes, séries, novelas…

Eu assisto muito às nossas novelas clássicas, dos anos 1970. Foi ao ar nesta semana uma cena que durou oito minutos, o que não tem mais em novelas das sete. É aquela em que a Cacá (Pri Helena) conta para o Jão os traumas dela de infância. Eu falei: “Eu vou fazer, não vou quebrar essa emoção”. O André [Câmara, diretor da novela] comprou a ideia e também se comprometeu em não picotar na edição. Foi ao ar e as pessoas amaram. Ou seja, tem uma demanda pela narrativa tradicional de novela.

“Por mais que as novelas tenham se aproximado do streaming e vice-versa, as pessoas querem ver novela com cara de novela. Elas sempre falam isso por aí.”

Estar assistindo às novelas da década de 1970 influenciou a minha mão em Volta por Cima. Porque a trama, o contexto, a história, é sempre novo, mas a narrativa, como você conduz, é uma coisa muito nossa, muito brasileira, que não podemos perder vendo muita série para fazer novela. Eu quero ver série para fazer série; mas para fazer novela, eu quero ver novela!