‘No rancho fundo’: elenco com estrelas e novatos e retorno de personagens de ‘Mar do sertão’ são trunfos de novela das 18h

Há quem diga que Minas Gerais tem o Brasil todo dentro de si. E a paisagem do Parque do Biribiri, nos arredores de Diamantina, combinou bem com o sertão meio verde, meio árido, imaginado pelo autor Mario Teixeira para o fictício povoado de Lasca Fogo. A Gruta do Salitre, uma das atrações mais impressionantes da região, também correspondia à fantasiosa Gruta Azul, local onde o autor pensou em guardar uma rara pedra turmalina, capaz de mudar o destino de uma família e o rumo de toda a história que ele começa a contar amanhã em “No rancho fundo”, novela que estreia na faixa das 18h da TV Globo.

Buscando aproveitar ao máximo tantos predicados naturais, no início de março o diretor artístico Allan Fiterman chegou à região com 140 profissionais, entre atores e técnicos, para registrar as cenas iniciais da saga dos Leonel Limeiro. Com filmagens que começavam logo após o nascer do sol, reuniu os veteranos Andrea Beltrão e Alexandre Nero (Tico) e a estreante Larissa Bocchino (Quinota), integrantes dessa família que enriquece depois que a matriarca Zefa Leonel (Andrea) encontra a tal pedra preciosa.

— É uma novela sobre essas pessoas humildes, que moram em uma casa onde não há luz elétrica, por exemplo, mas onde há muito afeto, sonho, desejo, coragem — diz Andrea, que precisou estar às seis da manhã na cadeira de maquiagem, para uma caracterização que inclui cabelão e pele marcada de sol. — Muito diferente de tudo que eu lembre ter feito nos últimos tempos.

Apesar de as cenas rodadas em Minas serem as primeiras a irem ao ar, Andrea e Larissa já estavam habituadas a conviver no set, pois as gravações no Rio haviam começado antes. Para a jovem de 25 anos, foi um sonho realizado.

Quinota (Larissa Bocchino) — Foto: Fabio Rocha/TVGlobo

Quinota (Larissa Bocchino) — Foto: Fabio Rocha/TVGlobo

—No ano passado, assisti Andrea no teatro e, em uma cena, ela interagia com a plateia — lembra Larissa. — Eu estava na primeira fila, e ela falou comigo. Fiquei muito apaixonada nesse dia. Aí, um ano depois…

Mineira de Contagem, na Grande Belo Horizonte, Larissa é formada em Teatro e Letras, com especialização em italiano. Era, inclusive, professora do idioma antes de se dedicar totalmente às artes. Mas nunca viu os dois ofícios dissociados.

— Sempre fazia dinâmicas em sala de aula que trouxessem jogos teatrais para os alunos trabalharem a imaginação e a língua fluir — diz a atriz, que tentou, sem sucesso, um horário livre na agenda da produção para dar uma oficina de teatro para algumas meninas que ficaram na porta do hotel em Diamantina trocando ideia com ela.

Arquétipos nordestinos

Larissa é uma novata tal qual Isadora Cruz, protagonista de “Mar do sertão”, novela de 2022 também comandada por Mario Teixeira e Allan Fiterman. Colocar uma atriz totalmente nova aos olhos do grande público é apenas uma das estratégias que a dupla repete neste folhetim.

— Continuamos com o mesmo conceito de fábula — explica Allan. — Assim como Canta Pedra, a cidade de “Mar do Sertão”, Lapão da Beirada não existe. Nela, há uma representação do povo nordestino. Quanto aos personagens, de novo, trabalhamos com arquétipos. É o jeito que o Mario escreve. Então tem o delegado, o prefeito, a mulher do cabaré. Mas não são caricaturas.

Zefa Leonel (Andrea Beltrão) — Foto: Fabio Rocha/TVGlobo

Zefa Leonel (Andrea Beltrão) — Foto: Fabio Rocha/TVGlobo

Assim como em “Mar do Sertão”, boa parte do elenco vem de fora da parte mais ao Sul do Brasil. Um exemplo é a atriz sergipana trans Ísis Broken, estreante nas telas.

—Também é uma questão de naturalizar esses corpos na dramaturgia, sem falar que essa pessoa é trans necessariamente. A personagem da Ísis (Corina) tem uma loja e entra em conflito com a costureira Tia Salete (interpretada por Mariana Lima). Em nenhum momento, isso acontece por ela ser trans. É uma briga comercial.

“No rancho fundo” e “Mar do sertão” também se comunicam de outra forma: Mario Teixeira trouxe para a nova obra personagens de sua novela de 2022. O chamado “crossover” já foi realizado entre outras produções, mas, segundo o diretor artístico Allan Fitterman, nunca nessa dimensão: são dez personagens de Canta Pedra que voltam a Lapão da Beirada — sem contar os repentistas, Totonho (Juzé) e Palmito (Lukete), que retornam, ao final de cada capítulo, para cantar o que virá no episódio seguinte.

Um dos grandes retornos é o da vilã interpretada por Debora Bloch.

—Já repeti personagem na série “Segunda chamada” quando fizemos a segunda temporada, mas em novela é a primeira vez — diz a atriz. — O desafio é fazer de uma maneira nova para mim e também para o público, mas o Mario está reapresentando a Deodora em uma fase bem diferente da vida dela.

Mario Teixeira cita Honoré de Balzac (1799-1850) quando fala da ideia de migrar personagens de uma história para outra. O escritor francês do século XIX é uma das inspirações do novelista — que também é autor do premiado livro juvenil “A linha negra” (2015), sobre a guerra do Paraguai.

— Gosto da ideia de retrabalhar personagens carismáticos — diz Mario. — Balzac fez isso em “A comédia humana” (conjunto da obra do francês). Há vários personagens que transitam de um livro para outro.

Inspiração no teatro

A relação de Mario com cânone da literatura permeia tudo que é colocado no ar. A própria ideia central de “No rancho fundo” veio da peça “A capital federal”, do escritor e teatrólogo Arthur de Azevedo (1855-1908):

— A peça fala de matutos que enriquecem subitamente e se mudam para a capital.

O autor misturou essa ideia de aburguesamento com a exploração desenfreada da turmalina paraíba, uma pedra que não existe mais no Brasil por causa do garimpo.

— Essa pedra, que deflagra a grande mudança na vida dos Leonel, foi extinta por causa da exploração indevida e ação de contrabandistas — conta Teixeira. — Joalheiros e entendidos chamam o brilho dela de azul néon, tão incrível que parece uma luz.

‘É preciso continuar’

O irlandês Samuel Beckett (1906-1989), Nobel de Literatura em 1969, também tem seu lugar no coração de Mario — e na boca da garimpeira sertaneja Zefa Leonel. A personagem de Andrea Beltrão vai repetir a famosa frase “é preciso continuar, não posso continuar, vou continuar”, trecho final de “O inominável” (1953), para salientar a perseverança feminina.

—Isso é um retrato da mulher nordestina, brasileira — diz Mario, nascido em São Paulo, mas filho de uma mulher nascida em Roraima, que ficou viúva cedo e criou sozinha cinco filhos — Os maridos migram para outros estados e não voltam, não têm condição de ajudar as famílias que deixaram. Essas mulheres sustentam tudo sozinhas.