Há alguns dias, o prefeito de Miami Beach, Steven Meiner, apresentou uma resolução com o objetivo de rescindir o contrato de aluguel que O Cinema mantém com a cidade para usar o espaço onde realiza suas exibições e cortar os subsídios públicos que recebe.
O motivo: a exibição de No Other Land, documentário vencedor do Oscar em que o ativista palestino Basel Adra e o jornalista israelense Yuval Abraham retratam as consequências da ocupação por forças israelenses na comunidade de Masafer Yatta, na Cisjordânia.
Apesar de ter vencido o Oscar em 2 de março, o documentário ainda não encontrou distribuidor nos EUA, e por isso os próprios cineastas estão encarregados da distribuição para cinemas independentes, como o O Cinema.
Ao justificar sua intenção de desalojar o O Cinema do espaço público que ocupa na antiga sede da prefeitura de Miami Beach, o prefeito Meiner, que é judeu, descreveu No Other Land como “um ataque propagandístico falso e unilateral contra o povo judeu, que não condiz com os valores da nossa cidade e dos nossos residentes”.
O O Cinema defende a decisão de exibir o documentário e insiste que sua missão é “apresentar filmes que provoquem reflexão, ainda que nem sempre agradem a todos”.
“Acreditamos no valor da liberdade de expressão e em apresentar uma variedade de pontos de vista que fomentem o debate”, disse à BBC Mundo Kareem Tabsch, cofundador do O Cinema e presidente da diretoria da organização sem fins lucrativos.
Tabsch confirmou que o O Cinema seguirá com as duas exibições de No Other Land previstas para esta semana, cujos ingressos já estão esgotados, enquanto os comissários de Miami Beach devem votar na próxima quarta-feira a proposta apresentada pelo prefeito Meiner.
Por outro lado, mais de 600 cineastas assinaram uma carta pedindo aos comissários que rejeitem a proposta de despejo. Entre os signatários estão os documentaristas Michael Moore, Billy Corben e o diretor de Moonlight, Barry Jenkins.
O documentário da discórdia
A polêmica começou em 5 de março, quando Meiner enviou uma carta aos responsáveis pelo O Cinema pedindo o cancelamento das exibições de No Other Land.
Na carta, publicada inicialmente pelo Miami Herald, o prefeito lembrou que sua cidade “tem uma das maiores concentrações de judeus nos EUA” e classificou o documentário como “um ataque propagandístico unilateral contra o povo judeu”.
“Aqui em Miami Beach, nossa cidade adotou uma política firme de apoio ao Estado de Israel em sua luta por autodefesa contra ataques das organizações terroristas Hamas e Hezbollah”, escreveu Meiner.
“É decepcionante que estejam ocorrendo exibições do filme parcial e impreciso No Other Land em um cinema de propriedade da cidade e operado pelo O Cinema.”
No dia seguinte, a cofundadora Vivian Marthell respondeu dizendo que, embora o documentário tivesse sido selecionado inicialmente para oferecer ao público a chance de conhecer produções indicadas ao Oscar, ela decidiu cancelar as sessões devido à preocupação com retórica antissemita.
Depois disso, Marthell e os demais membros da diretoria voltaram atrás, citando o risco de ameaça à liberdade de expressão, e decidiram seguir com as exibições.
Kareem Tabsch relatou à BBC Mundo que a decisão inicial de cancelar as sessões foi tomada “sob pressão”.
“Foi muito intimidador receber uma carta do prefeito praticamente ameaçando o futuro do O Cinema”, explicou.
“Respondemos sob pressão. Mas rapidamente percebemos que ceder não faz parte do nosso DNA. Então, após consultar nossos funcionários, a diretoria e membros da comunidade, respondemos ao prefeito, poucas horas depois, que iríamos seguir com a exibição do documentário.”
“Sabíamos que havia interesse da comunidade, o que ficou claro porque todos os ingressos foram vendidos”, completou.
“Espalhar o antissemitismo”
Na semana passada, no boletim da cidade enviado aos moradores, Meiner criticou duramente o O Cinema por seguir com a exibição e acusou a instituição de “normalizar o ódio e espalhar o antissemitismo” num centro financiado com recursos públicos.
“Por isso, estou apresentando uma legislação para romper com o O Cinema, conforme permite nosso contrato, e buscar um parceiro cultural mais alinhado com os valores da nossa comunidade”, anunciou Meiner.
Se aprovada, a resolução anulará o contrato de aluguel do O Cinema com Miami Beach e suspenderá o pagamento de dezenas de milhares de dólares em subsídios prometidos pela prefeitura.
A BBC Mundo tentou contato com Meiner, mas sua assessoria apenas encaminhou a declaração feita no boletim.
Na quinta-feira, Yuval Abraham, jornalista israelense e um dos quatro diretores de No Other Land, declarou:
“Quando o prefeito usa a palavra ‘antissemitismo’ para silenciar palestinos e israelenses que se opõem com orgulho à ocupação e ao apartheid, lutando juntos por justiça e igualdade, ele esvazia o termo de seu significado.”
“A censura é sempre errada. Proibir um filme só aumenta o desejo das pessoas de vê-lo.”
Tabsch, do O Cinema, disse que têm recebido “apoio massivo da comunidade” e que esperam uma solução pacífica.
“Esperamos que a serenidade prevaleça e que possamos continuar servindo ao sul da Flórida. Mas vamos explorar todos os meios necessários para continuar fazendo nosso trabalho. Amamos Miami Beach e queremos continuar sendo parte desta comunidade por muito tempo.”
“Lamentável”
Daniel Tilley, diretor jurídico da ACLU da Flórida, afirmou esperar que os comissários respeitem a Primeira Emenda da Constituição dos EUA, que protege a liberdade de expressão.
“Esperamos que eles não adotem essa medida descaradamente ilegal proposta pelo prefeito, que discriminaria um cinema por exibir algo de que ele não gosta”, disse Tilley à BBC Mundo.
“É lamentável que alguns políticos achem que podem tomar qualquer decisão ilegal sem consequências.”
“Mas estamos aqui para apoiar o O Cinema e garantir que seus direitos constitucionais sejam respeitados.”
“O governo não pode retaliar contra um discurso ou cortar financiamento por causa de opiniões políticas.”
A comissária Kristen Rosen Gonzalez afirmou concordar com a crítica de Meiner ao filme, mas alertou contra reações impulsivas que poderiam gerar batalhas legais caras, lembrando o compromisso de longa data do O Cinema com a comunidade judaica.
Já o comissário David Suárez manifestou apoio à proposta de Meiner:
“Foi eleito um prefeito judeu ortodoxo, junto com um conselho municipal sionista. Ao contrário de outras cidades, aqui temos tolerância zero com propaganda pró-Hamas ou terrorista.”
“Miami Beach continuará defendendo sua população judaica, que inclui sobreviventes do Holocausto. Para nós, o ‘Nunca Mais’ é sério.”
Após a ameaça de expulsão, a cinemateca da cidade vizinha de Coral Gables anunciou que realizará várias exibições do documentário da discórdia.